A indústria automóvel mundial está a atravessar um dos períodos mais conturbados da sua história recente, e o grupo Stellantis encontra-se no epicentro deste furacão. Após a saída abrupta de Carlos Tavares, o novo CEO, Antonio Filosa, assumiu as rédeas com uma missão clara: estancar a hemorragia financeira e redefinir as prioridades de um império que parece ter marcas a mais para os clientes que consegue conquistar. A questão que paira no ar, e que tem deixado entusiastas e investidores em sobressalto, é se marcas históricas como a Lancia ou a divisão de luxo DS Automobiles têm os dias contados nesta nova era.
Para compreendermos o que está a acontecer, é preciso olhar para além dos comunicados de imprensa polidos. A estratégia anterior baseava-se numa rentabilidade agressiva por unidade, muitas vezes sacrificando o volume de vendas e a quota de mercado. Agora, o cenário mudou radicalmente. Filosa, um veterano da casa com 25 anos de experiência, parece estar disposto a “matar os filhos” que não trazem sustento à mesa, focando-se no que realmente vende: carros acessíveis e marcas com escala global.

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O Novo Rumo da Stellantis: O Fim da Era Carlos Tavares
O legado de Carlos Tavares na Stellantis será sempre recordado pela sua obsessão pela eficiência e pelas margens de lucro de dois dígitos. No entanto, essa mesma política de “preços premium” acabou por afastar o cliente comum, deixando as fábricas a trabalhar a meio gás e os concessionários com stock acumulado. O novo patrão da Stellantis, Antonio Filosa, identificou rapidamente que o grupo não pode sobreviver apenas com margens altas se os volumes continuarem a cair a pique, especialmente nos mercados europeu e norte-americano.
A mudança de liderança trouxe consigo uma “sala de emergência” operacional. Filosa não quer apenas gerir o declínio, ele quer reconquistar o terreno perdido para os construtores chineses e para a concorrência europeia mais ágil. Isto implica uma rutura total com o passado recente, onde cada cêntimo era poupado na produção, mas os carros chegavam aos stands com preços proibitivos. A nova diretriz foca-se na acessibilidade, o que coloca um alvo direto nas marcas que não conseguem justificar o seu posicionamento no mercado.
Stellantis e a Reorganização Drástica das Suas Marcas
Com 14 marcas debaixo do mesmo teto, a Stellantis sempre foi criticada por ter uma estrutura demasiado pesada e confusa. Tavares prometeu 10 anos de vida a todas elas, mas o tempo e a economia não perdoam. Antonio Filosa está a simplificar a organização de forma impiedosa, fundindo departamentos e eliminando redundâncias que atrasavam a tomada de decisão. O objetivo é criar uma estrutura mais plana, onde a agilidade local seja mais importante do que as diretrizes rígidas vindas de Paris ou Turim.
Esta reorganização não é apenas administrativa, é uma questão de sobrevivência biológica para as marcas. Ao dar mais autonomia às regiões, a Stellantis espera reagir mais depressa às mudanças de consumo. Contudo, marcas como a DS e a Lancia, que dependem fortemente do mercado europeu e de um nicho muito específico, encontram-se agora numa posição de extrema vulnerabilidade, sem o “guarda-chuva” protetor que a anterior gestão lhes garantia por decreto.

O Drama da DS Automobiles: Luxo Francês ou Peso Morto?
A DS Automobiles nasceu com a ambição de ser a resposta francesa à Audi ou à BMW, utilizando o prestígio histórico do “boca-de-sapo” original. Todavia, apesar de produtos competentes e interiores luxuosos, a marca nunca conseguiu descolar verdadeiramente em termos de volume. No novo paradigma da Stellantis, onde o volume é rei, uma marca que vende pouco e exige um investimento massivo em marketing e diferenciação técnica torna-se um problema difícil de ignorar para Antonio Filosa.
A realidade é que a DS partilha quase tudo com a Peugeot e a Citroën, mas tenta cobrar um valor significativamente superior. Quando o mercado aperta, os clientes premium tendem a refugiar-se nas marcas alemãs consolidadas ou a saltar para a Tesla. Se a DS não conseguir provar que traz lucro líquido e volume sustentável nos próximos meses, o seu destino poderá passar pela absorção total ou, no limite, pelo encerramento, libertando recursos para marcas como a Fiat ou a Opel, que têm um alcance muito mais vasto.
A Sobrevivência da DS no Portefólio da Stellantis
Muitos analistas defendem que a DS Automobiles foi um erro estratégico desde o início, uma tentativa forçada de criar luxo onde o mercado não o via. O novo CEO da Stellantis sabe que manter uma rede de distribuição exclusiva para a DS é caríssimo. Numa altura em que o grupo precisa de capital para investir em novas plataformas elétricas e híbridas, manter uma marca “boutique” que não atrai as massas parece um luxo que a empresa já não se pode dar ao luxo de sustentar.
Ainda assim, há quem argumente que a DS serve de laboratório tecnológico para o resto do grupo. Mas, sejamos honestos, no mundo dos negócios da Stellantis, se a tecnologia pode ser aplicada num Peugeot 3008 e vender dez vezes mais, por que gastar dinheiro a promover um DS 7? A pressão dos acionistas por resultados imediatos em 2025 e 2026 será o derradeiro teste para a marca francesa, que poderá ver o seu orçamento cortado drasticamente a favor de modelos mais populares.

Lancia: O Renascimento Interrompido pela Nova Gestão?
A Lancia é um caso que mexe com o coração de qualquer entusiasta automóvel, mas os negócios não se fazem com sentimentos. Após anos reduzida apenas ao mercado italiano com o veterano Ypsilon, a marca estava finalmente a preparar um regresso triunfal à Europa. O plano de relançamento, desenhado sob o olhar de Tavares, previa novos modelos como o Gamma e o Delta. No entanto, com a entrada de Filosa e a nova mentalidade da Stellantis, este “renascimento” pode ter sido travado antes de ganhar velocidade.
O problema da Lancia é semelhante ao da DS, mas com o agravante de ter estado “morta” fora de Itália durante demasiado tempo. Reconstruir uma imagem de marca, abrir novos concessionários e convencer os clientes a comprar um Lancia elétrico ou híbrido em vez de um concorrente já estabelecido requer milhares de milhões de euros. No atual estado de emergência da Stellantis, investir numa marca com um futuro tão incerto pode ser visto como uma distração perigosa pela nova liderança.

O Futuro Incerto da Lancia sob o Comando de Antonio Filosa
O novo CEO da Stellantis já deu sinais de que a prioridade são as marcas que geram fluxo de caixa imediato. A Lancia, apesar do charme, é atualmente um centro de custos. Os rumores de que o projeto Gamma poderia ser cancelado ou adiado sine die ganham força nos bastidores da indústria. Se a marca não conseguir demonstrar um sucesso instantâneo com o novo Ypsilon em mercados como o francês ou o espanhol, o novo patrão da Stellantis dificilmente assinará os cheques para os próximos modelos.
A despromoção de alguns quadros superiores ligados à Lancia e a recente reorganização interna sugerem que a marca perdeu o estatuto de “protegida”. A Stellantis precisa de simplificar a sua oferta para não canibalizar as suas próprias vendas. Ter a Alfa Romeo como marca desportiva premium e a Lancia como marca de luxo elegante pode ser uma sobreposição excessiva num mercado que está a encolher e a tornar-se cada vez mais dominado por marcas de baixo custo.
A Estratégia de Antonio Filosa: Volume sobre Margem
A grande diferença entre a Stellantis de Tavares e a de Filosa reside na abordagem ao mercado. Filosa acredita que, para manter a relevância global, o grupo precisa de recuperar a sua quota de mercado, mesmo que isso signifique margens de lucro mais modestas a curto prazo. Ele planeia recorrer a vendas táticas e frotas, canais que o seu antecessor desprezava. Esta mudança radical visa ocupar as linhas de produção e garantir que a Stellantis continua a ser um player de peso nos EUA e na Europa.
Este foco no volume favorece marcas como a Citroën, a Fiat e a Opel, que têm produtos destinados ao grande público. Por outro lado, coloca em xeque marcas de nicho. Na visão da nova Stellantis, cada marca deve justificar a sua existência através de números concretos, não apenas por “herança histórica”. É uma abordagem pragmática, quase fria, que visa salvar o todo, sacrificando as partes que não contribuem positivamente para a balança comercial do grupo.
O Impacto das Vendas Táticas no Futuro da Stellantis
As vendas para rent-a-car e grandes frotas corporativas, que tinham sido cortadas para elevar a exclusividade e o preço, estão de volta. Filosa sabe que um carro na estrada é a melhor publicidade e que a Stellantis não pode permitir que as marcas chinesas ocupem esse espaço vazio. Esta estratégia de inundar o mercado com modelos acessíveis é a antítese do que marcas como a DS e a Lancia representam, o que reforça a ideia de que estas marcas estão desalinhadas com o novo rumo da companhia.
Além disso, a Stellantis está a rever os seus objetivos de eletrificação total. Sob a nova liderança, o grupo está a ser mais realista quanto à procura de veículos elétricos (EVs), reintroduzindo motores de combustão e versões híbridas onde os clientes os pedem. Esta flexibilidade é vital, mas para marcas que se queriam posicionar como 100% elétricas já em 2024 ou 2025, como era o caso da DS e da Lancia, esta mudança de agulha obriga a uma reestruturação completa dos planos de produto.

O Que Esperar de 2025 e 2026 para a Stellantis?
Os próximos dois anos serão decisivos para determinar quais os logótipos que sobreviverão na grelha da Stellantis. Antonio Filosa previu uma margem operacional de cerca de 5% para 2025, um valor muito abaixo dos tempos áureos de Tavares, mas que reflete a realidade de um investimento massivo em reestruturação e conquista de mercado. Se este plano de choque funcionar, a Stellantis emergirá mais forte, mas provavelmente com menos marcas no seu portefólio.
- Foco na Jeep e RAM: Fortalecer a presença nos EUA com o regresso de motores mais potentes e preços competitivos.
- Aposta na Fiat e Citroën: Dominar o mercado de entrada na Europa com carros elétricos e híbridos baratos (como o novo C3 e o Grande Panda).
- Maserati em banho-maria: A marca do tridente também está sob observação, mas o seu prestígio global dá-lhe uma margem de manobra que a DS não tem.
- Consolidação de Plataformas: Reduzir drasticamente a complexidade técnica entre as marcas para baixar custos.
A sobrevivência da DS e da Lancia dependerá da sua capacidade de gerar lucro operacional imediato. Não haverá mais paciência para “planos a 10 anos” se o balanço estiver no vermelho. O novo patrão da Stellantis é um homem de resultados, e num mercado global agressivo, o sentimentalismo não tem lugar no conselho de administração.

O Impacto das Plataformas STLA na Decisão de Filosa
A espinha dorsal técnica da Stellantis assenta nas novas plataformas STLA (Small, Medium, Large e Frame). Estas arquiteturas foram desenhadas para serem partilhadas por todas as 14 marcas, prometendo uma redução de custos sem precedentes. Contudo, Antonio Filosa percebeu que a diferenciação necessária para manter marcas como a DS ou a Lancia relevantes exige investimentos em “pele” (design) e interiores que anulam parte das poupanças de escala.
Para o novo gestor, o dilema é matemático: se a plataforma STLA Medium serve para um Peugeot 3008 (sucesso de vendas) e para um futuro DS 7, mas o DS requer componentes de suspensão ativos e isolamento acústico superior para justificar o preço, o lucro final por unidade pode ser menor no DS devido ao baixo volume de produção. Na visão de Filosa, a Stellantis deve focar-se em modelos que utilizem as plataformas no seu estado mais puro e rentável, sem os “adereços” caros exigidos pelos segmentos de luxo.
A Eficiência Produtiva como Tábua de Salvação
A integração das marcas na Stellantis chegou a um ponto em que a distinção entre elas é quase puramente cosmética. Filosa quer levar esta lógica ao extremo, eliminando variantes que não acrescentem valor real ao consumidor final. Se um cliente procura um SUV elétrico, a Stellantis prefere que ele compre um Jeep ou um Peugeot, marcas com redes de assistência globais e maior valor de revenda.
Este foco na eficiência fabril coloca em causa a existência de linhas de montagem dedicadas ou processos de controlo de qualidade mais lentos exigidos por marcas premium. Na nova ordem da Stellantis, o cronómetro das fábricas manda mais do que o departamento de design. Se a produção de um Lancia atrasa a cadência de uma fábrica que poderia estar a debitar Fiats, a marca italiana torna-se um obstáculo à rentabilidade global do grupo.

A Ameaça Chinesa e a Resposta Pragmática da Stellantis
Não se pode ignorar que a Stellantis enfrenta uma concorrência feroz da China. Antonio Filosa sabe que marcas como a BYD ou a MG estão a entrar na Europa com preços imbatíveis. Manter marcas “caras” como a DS ou a Lancia enquanto o mercado de entrada está a ser invadido é uma estratégia arriscada. O novo CEO prefere armar a Citroën e a Fiat com produtos competitivos (como o novo C3 e o Grande Panda) do que tentar vender luxo europeu a quem mal tem dinheiro para o primeiro carro elétrico.
A parceria recente com a Leapmotor é a prova desta mudança de agulha. Ao trazer tecnologia chinesa barata para dentro de casa, a Stellantis admite que o custo de desenvolvimento europeu é demasiado alto para certos segmentos. Se a tecnologia Leapmotor pode salvar a margem operacional das marcas de volume, marcas como a DS, que dependem de desenvolvimento 100% europeu e premium, tornam-se anacronismos financeiros num balanço que precisa de respirar.
O Papel da Tecnologia Leapmotor no Portefólio
A integração da Leapmotor na estrutura da Stellantis serve como um plano B caso as marcas europeias não consigam baixar os custos de produção rapidamente. Filosa vê nesta parceria uma forma de inundar o mercado com elétricos de 20.000 euros, algo que a DS ou a Lancia nunca conseguiriam fazer sem destruir o seu posicionamento de luxo.
Esta dualidade cria uma divisão interna: de um lado, as marcas que se adaptam à nova realidade de “custo-benefício” e tecnologia partilhada; do outro, as marcas que insistem na herança e no detalhe artesanal. No gabinete de crise da Stellantis, a balança pende claramente para o lado do pragmatismo tecnológico chinês, deixando pouco oxigénio para os sonhos de renascimento da Lancia ou para a sofisticação da DS.
O Desafio da América do Norte: Jeep e RAM Acima de Tudo
Embora o debate sobre a DS e a Lancia seja muito centrado na Europa, Antonio Filosa tem os olhos postos nos EUA. A Stellantis está a perder terreno no mercado americano, onde a Jeep e a RAM são os pilares de sustentação. O novo CEO sabe que, se a operação nos EUA não for rentável, não haverá dinheiro para sustentar nenhuma marca europeia, por mais icónica que seja.
A estratégia de “limpar a casa” nos EUA inclui baixar os preços dos modelos Jeep e recuperar os clientes que fugiram para a Ford ou a Chevrolet devido aos aumentos sucessivos da era Tavares. Para Filosa, cada euro gasto a tentar convencer um parisiense a comprar um DS é um euro que não está a ser investido para salvar a quota de mercado da RAM no Texas. Na geopolítica interna da Stellantis, a América do Norte é o motor, e a Europa é, cada vez mais, uma oficina de luxo que precisa de ser simplificada.
A Prioridade dos “Big Earners” no Grupo
Marcas como a Jeep, RAM e Peugeot são as que realmente pagam as contas da Stellantis. Filosa pretende reforçar estes ativos, garantindo que têm os melhores motores (incluindo o regresso de opções térmicas e híbridas mais robustas) e os preços mais agressivos. Este foco nos “ganhadores” deixa pouco espaço para a tolerância com os “perdedores” ou com marcas em estado de hibernação.
A nova gestão não terá medo de admitir fracassos. Se a incursão da DS no mercado chinês falhou e se as vendas na Europa não atingem o ponto de equilíbrio (break-even), o novo patrão da Stellantis não hesitará em puxar a ficha. O mercado americano exige resultados imediatos, e os investidores de Wall Street não têm nostalgia por marcas que só existem em showrooms de Paris ou Milão.
Conclusão: A Stellantis no Limite da Decisão
Em suma, a Stellantis está a passar por uma purga necessária para garantir a sua viabilidade a longo prazo. A era de Carlos Tavares, focada na rentabilidade extrema, deixou o grupo vulnerável à falta de escala e a preços fora da realidade do consumidor. Antonio Filosa está a inverter o curso, focando-se no volume e na eficiência pragmática. Infelizmente para os fãs de marcas mais exclusivas, isso coloca a DS e a Lancia na linha da frente para possíveis cortes ou integrações mais profundas que poderão desvirtuar a sua identidade original.
O futuro da Stellantis passa por ser uma gigante eficiente e não apenas um conglomerado de marcas históricas em dificuldades. Se isso significa o fim de alguns nomes icónicos, apenas o tempo dirá, mas os sinais vindos do novo CEO são claros: nada é sagrado se não for rentável. A indústria automóvel não perdoa, e a nova Stellantis parece finalmente ter acordado para essa realidade.








