Há uma reaproximação no ar entre Renault e Stellantis? Os líderes dos dois grupos reuniram-se em conclave no Salão do Automóvel de Paris no ano passado. E mais recentemente, eles fizeram uma declaração conjunta para denunciar as medidas da União que estão a matar os carros urbanos. Na realidade, ambos os fabricantes estão a apontar baterias exatamente aos mesmos segmentos de mercado. Será que eles poderiam unir forças? A resposta é não e aqui está o porquê.

Sumário do conteúdo
Veja também …
Onde o Passado Encontra um Futuro Elétrico e Complexo
A indústria automóvel é um caldeirão em constante ebulição, um palco onde a inovação tecnológica, as tendências de mercado e as pressões regulatórias se cruzam a cada instante. Assistimos, nos últimos anos, a transformações profundas e a movimentos sísmicos que redesenharam o mapa global da mobilidade. Fusões, aquisições e parcerias estratégicas tornaram-se o pão nosso de cada dia, à medida que os gigantes do setor procuram sinergias, economias de escala e novas avenidas de crescimento num ambiente cada vez mais competitivo e exigente.
Neste cenário de mudança vertiginosa, surgem frequentemente especulações sobre possíveis uniões entre players de peso. No entanto, algumas dessas ideias, por muito intrigantes que pareçam à primeira vista, revelam-se rapidamente improváveis ou até mesmo completamente descabidas quando analisadas em profundidade. É precisamente o caso da hipotética fusão ou aliança estratégica entre a Renault e Stellantis. Porquê? Porque o tabuleiro de xadrez já se moveu, e as peças de cada um destes colossos automóveis estão agora dispostas de forma a perseguir objetivos bem definidos e, em grande parte, independentes. A ideia de as verem a caminhar lado a lado, em vez de competir, é um anacronismo no contexto estratégico atual de ambas.
O Cenário Atual: Uma Indústria em Reengenharia Profunda
A transição para a eletrificação é, sem dúvida, a força motriz mais disruptiva da indústria automóvel na presente década. Não se trata apenas de substituir motores de combustão por baterias e motores elétricos; é uma transformação que abrange toda a cadeia de valor, desde a concepção e fabrico dos veículos até aos modelos de negócio, serviços e, fundamentalmente, a forma como encaramos a mobilidade. Os investimentos necessários são colossais, e as empresas são forçadas a repensar as suas estruturas, a sua oferta e a sua presença global para sobreviver e prosperar.
Além da eletrificação, a digitalização e a conetividade estão a redefinir a experiência de condução, transformando os automóveis em plataformas tecnológicas complexas. A ascensão de novos concorrentes, especialmente da China, e a escassez de componentes cruciais, como os semicondutores, adicionam camadas de complexidade e incerteza. Num mundo assim, onde a agilidade e a capacidade de adaptação são vitais, as estratégias de cada construtor tornam-se altamente focadas e, por vezes, surpreendentemente exclusivas, afastando-as de parcerias que, noutros tempos, poderiam fazer sentido.
Colocando lenha na fogueira
Os dois fabricantes não parecem estar dispostos a abrir mão de sua independência. A dupla entrevista que John Elkann, presidente da Stellantis, e Luca de Meo, chefe da Renault, deram ao jornal francês “Le Figaro” naturalmente alimentou os rumores, mas no “Future of the Car Summit”, em Londres, o primeiro mais uma vez cortou essas projeções infundadas. “Não estamos discutindo nenhuma fusão”, ele respondeu secamente. A Renault também deixou claro que não tem planos de enfrentar sua rival franco-ítalo-americana.

A Estratégia da Renault: Renaulution em Pleno Vapor
A Renault, sob a liderança de Luca de Meo, embarcou num plano ambicioso e multifacetado apelidado de “Renaulution”. Este plano, anunciado em 2021, visa transformar a empresa, passando de um modelo focado em volume para um modelo centrado em valor, tecnologia e sustentabilidade. É uma verdadeira revolução interna que está a redefinir a identidade e o futuro da marca do losango.
O plano “Renaulution” está assente em três pilares principais: “Resurrection” (para restaurar a competitividade e a rentabilidade), “Renovation” (para renovar e enriquecer a gama de produtos) e “Revolution” (para se posicionar em novas tecnologias e serviços de mobilidade). Para atingir estes objetivos, a Renault tem vindo a reorganizar as suas atividades em unidades de negócio focadas, como a Ampere (dedicada aos veículos elétricos e software), a Horse (motores térmicos e híbridos, em parceria com a Geely), e a Mobilize (serviços de mobilidade e energia).
Esta reestruturação permite à Renault ser mais ágil, atrair investimento externo para áreas específicas e acelerar o desenvolvimento tecnológico. A complexa teia de alianças que a Renault tem vindo a construir, incluindo a sua parceria histórica com a Nissan e a Mitsubishi, mas também novas colaborações com gigantes como a Google (para software) e a Volvo Trucks (para a Van de Próxima Geração), demonstra uma abordagem estratégica que privilegia parcerias específicas e direcionadas, em vez de megafusões que diluam o foco. É uma empresa que está a olhar para dentro e para parcerias cirúrgicas, não para grandes amálgamas.

A Visão da Stellantis: Dare Forward 2030 e a Força da Massa Crítica
A Stellantis, por sua vez, nasceu da fusão entre a Fiat Chrysler Automobiles (FCA) e o Groupe PSA, uma união consumada em 2021 que criou o quarto maior grupo automóvel do mundo em termos de volume de vendas. Esta empresa, anteriormente liderada por Carlos Tavares, traçou o seu próprio plano estratégico ambicioso, o “Dare Forward 2030”, que espelha a sua determinação em liderar a transição para a mobilidade sustentável e em alcançar uma rentabilidade de dois dígitos.
O “Dare Forward 2030” baseia-se em pilares como a eletrificação total da gama de produtos, o desenvolvimento de software e serviços conectados, a economia circular e a expansão global, com um foco particular em mercados como a América do Norte e a China. A Stellantis beneficia da sua diversidade de marcas – desde as generalistas Peugeot, Citroën e Fiat, passando pelas americanas Jeep, Chrysler, Dodge e Ram, até às premium Alfa Romeo, Lancia e Maserati – o que lhe confere uma vasta base de clientes e uma flexibilidade de mercado invejável.
A empresa tem vindo a otimizar as suas plataformas e a partilhar tecnologias entre as suas 14 marcas, gerando significativas sinergias internas que contribuem para a sua robustez financeira. A recente aposta na empresa chinesa Leapmotor é um exemplo claro da estratégia da Stellantis: em vez de procurar uma fusão com um concorrente ocidental direto, opta por parcerias que lhe abram portas em mercados estratégicos e lhe permitam aceder a novas tecnologias ou modelos de negócio complementares, reforçando a sua posição global sem as dores de cabeça de uma integração complexa com um rival de dimensão semelhante.
Porquê Renault e Stellantis Juntas Não Fazem Sentido? As Barricadas à Colaboração
A ideia de uma fusão entre a Renault e Stellantis pode parecer apelativa para alguns analistas superficiais, talvez por juntar dois pesos pesados europeus. No entanto, uma análise mais aprofundada revela que os desafios e as redundâncias superariam largamente os potenciais benefícios. Há várias razões cruciais que tornam esta união uma miragem no cenário atual da indústria automóvel.
Em primeiro lugar, a sobreposição de mercados e portefólios é massiva. Ambas as empresas têm uma presença fortíssima na Europa, com gamas de produtos generalistas que competem diretamente entre si. Juntar a Renault com a Peugeot, a Citroën com a Dacia, ou o Grupo Fiat com os veículos comerciais da Renault, resultaria numa duplicação colossal de infraestruturas, redes de concessionários, linhas de produção e, inevitavelmente, pessoal. A eliminação destas redundâncias seria um processo doloroso, dispendioso e socialmente complexo, gerando resistências sindicais e impactos económicos significativos em diversas regiões. O potencial de sinergias de custos seria rapidamente ofuscado pela magnitude da reestruturação necessária.
A Complexidade de Gerir Duas Culturas Fortes e Distintas
Integrar duas empresas com culturas corporativas tão vincadas como a da Renault e da Stellantis é um desafio hercúleo, que transcende a mera otimização de ativos. A Renault, com a sua herança francesa e uma forte ligação ao estado francês, tem uma forma de operar que difere significativamente da Stellantis, um aglomerado multinacional que reúne a cultura italiana da Fiat, a americana da Chrysler e a francesa da PSA, com um líder global.
As filosofias de gestão, os processos de tomada de decisão, as estruturas hierárquicas e até mesmo as relações com os sindicatos variam consideravelmente entre as duas organizações. Histórias de fusões mal sucedidas no passado, como a da DaimlerChrysler, servem como um lembrete vívido das dificuldades em harmonizar diferentes identidades corporativas. É um puzzle com peças que, apesar de parecerem encaixar, trazem consigo uma bagagem cultural e organizacional que tornaria a fusão mais um fardo do que uma vantagem competitiva. A energia e os recursos que seriam gastos na gestão de conflitos internos e na harmonização de processos seriam desviados do foco principal: a inovação e o desenvolvimento de produtos para o futuro.
Renault e Stellantis – Benefícios Marginais Face a Custos e Disrupção
Apesar da tentação de se pensar em economias de escala gigantescas ao juntar a Renault e Stellantis, a realidade é que ambas as empresas já alcançaram níveis de escala que lhes permitem negociar com fornecedores e desenvolver tecnologias de forma eficiente. As sinergias adicionais que poderiam ser obtidas através de uma fusão seriam, provavelmente, marginais em comparação com os custos e a disrupção causados por uma integração tão vasta.
Ambas as empresas já estão a explorar outras vias para otimizar os seus custos e inovar. A Renault, com a sua estratégia de parcerias seletivas (com a Geely para motores de combustão, com a Google para software, com a Volvo para veículos comerciais elétricos), e a Stellantis, com a sua arquitetura de plataformas partilhadas entre as suas marcas e a aquisição de fatias em empresas de tecnologia (como a Leapmotor), demonstram que as sinergias procuradas são agora mais focadas e menos “tudo-em-um”.
A união de duas empresas que já são gigantes não cria automaticamente mais valor, especialmente se os seus portefólios e estratégias já se sobrepõem de forma significativa. Pelo contrário, pode gerar uma complexidade insuportável e uma lentidão na tomada de decisões num setor que exige agilidade extrema.

Obstáculos Regulatórios e Antitruste Inevitáveis
Uma fusão entre a Renault e Stellantis criaria um supergrupo automóvel com uma quota de mercado dominante em várias regiões, particularmente na Europa. Tal movimento levantaria preocupações sérias por parte das autoridades reguladoras e antitruste, que teriam de analisar cuidadosamente o impacto na concorrência e no consumidor.
A aprovação de uma fusão desta dimensão seria um processo longo, complexo e, muito provavelmente, condicionado a diversas desinvestimentos ou concessões por parte das empresas envolvidas. As exigências regulatórias poderiam levar à venda de marcas ou fábricas, desvirtuando parte dos objetivos da fusão e tornando o processo ainda mais oneroso e incerto. A experiência da própria Stellantis, que teve de ceder fábricas e concessões para obter a aprovação da sua fusão, é um precedente que as autoridades teriam em mente, tornando a perspetiva de uma nova megafusão ainda mais intrincada e cheia de obstáculos burocráticos.
Estratégias Atuais Divergentes e Foco Interno
Apesar da Renault e Stellantis estarem a navegar a transição para a eletrificação e digitalização, as suas abordagens e prioridades estratégicas apresentam nuances importantes. A Renault, por exemplo, está a focar-se na criação de unidades de negócio separadas para atrair investimento e valorizar as suas diferentes áreas de expertise (Ampere, Horse, Mobilize). Esta é uma estratégia de “desagregação” que visa libertar valor e permitir uma maior agilidade.
A Stellantis, por outro lado, está a concentrar-se na otimização da sua vasta carteira de marcas, na uniformização de plataformas e na maximização das sinergias internas pós-fusão FCA-PSA. O seu foco é consolidar o seu poder de massa e expandir-se estrategicamente em mercados-chave com parcerias focadas. Ambas as empresas estão a meio de planos ambiciosos de reestruturação e crescimento interno que exigem total dedicação e recursos.
Desviar o foco para uma fusão complexa e de benefícios incertos seria contraproducente e poderia comprometer o progresso que já foi alcançado. É, de facto, um momento em que cada uma está a arrumar a sua própria casa, e não a pensar em partilhar um teto.

O Futuro da Mobilidade: Alianças Estratégicas e Não Fusões Gigantescas
A indústria automóvel do futuro não será moldada por um número reduzido de mega-grupos monolíticos, mas sim por uma rede complexa de alianças estratégicas e parcerias modulares. O ambiente exige agilidade, especialização e a capacidade de colaborar em áreas específicas, sem sacrificar a autonomia e o foco em outras.
Os fabricantes automóveis estão a tornar-se cada vez mais integradores de tecnologia, colaborando com empresas de software, produtores de baterias, fornecedores de inteligência artificial e empresas de energias renováveis.
As parcerias verticais e horizontais, focadas em componentes específicos, plataformas tecnológicas ou serviços de mobilidade, oferecem uma forma mais flexível e menos arriscada de aceder a competências e mercados que complementam as suas capacidades internas. A Renault e Stellantis já estão a seguir este caminho, e é por isso que a ideia de uma fusão entre elas se torna redundante.
- Parcerias Tecnológicas: Colaboração com empresas de software, IA, cibersegurança.
- Alianças de Produção: Partilha de plataformas ou linhas de montagem para modelos específicos.
- Acordos de Fornecimento: Garantia de acesso a matérias-primas essenciais, como lítio ou semicondutores.
- Joint Ventures para Novos Negócios: Desenvolvimento conjunto de serviços de mobilidade, infraestruturas de carregamento, ou soluções de economia circular.
- Cooperação em Mercados Emergentes: Parcerias para penetrar ou reforçar a presença em regiões com desafios culturais ou regulatórios específicos.
Conclusão: Um Olhar Realista sobre a Indústria Automóvel do Século XXI
Em suma, a pergunta “Renault e Stellantis juntas?” nem é assunto para discussão no atual panorama da indústria automóvel. É uma ideia que pertence a um passado onde as fusões eram vistas como a solução mágica para todos os males. Hoje, o jogo mudou. Tanto a Renault e Stellantis estão profundamente empenhadas em suas próprias e ambiciosas estratégias de transformação, cada uma com planos bem delineados para enfrentar os desafios da eletrificação, digitalização e concorrência global.
Ambas as empresas estão a construir os seus futuros através de uma combinação de inovação interna robusta e de uma rede inteligente de parcerias estratégicas, que são mais focadas e menos onerosas do que uma fusão completa. As barreiras à união – a sobreposição de mercados, a complexidade cultural e operacional, os custos avultados, os obstáculos regulatórios e o foco interno em planos já em curso – são demasiado grandes para que tal movimento faça sentido económico ou estratégico.
A indústria automóvel do século XXI é um ecossistema complexo, e a agilidade e a capacidade de adaptação são mais valiosas do que o mero tamanho. A Renault e Stellantis, ao traçarem os seus próprios caminhos, estão a demonstrar que compreenderam esta realidade, e que o futuro passa por colaborações cirúrgicas e não por amálgamas desnecessárias. O destino da mobilidade está a ser escrito, e cada um deles está a escrever a sua própria e bem-sucedida página.