A história do Renault 4 não é apenas a crónica de um automóvel; é o retrato de uma época, um espelho das transformações sociais e um símbolo de liberdade e versatilidade que perdurou por mais de três décadas. Conhecido em Portugal como “Quatro Latas” e carinhosamente apelidado de “Quatrelle” em França, este ícone da marca do losango transcendeu a sua função de simples meio de transporte, tornando-se uma peça fundamental na cultura popular em mais de cem países, com mais de 8 milhões de unidades vendidas globalmente. A sua longevidade, robustez e a filosofia de ser um carro “para todos” garantiram-lhe um lugar cativo no panteão dos modelos mais influentes da história automóvel.
A Renault, sob a visão de Pierre Dreyfus, Diretor-Geral em 1956, procurava criar um veículo que fosse tão essencial e adaptável como umas “calças de ganga”: acessível, prático e capaz de satisfazer as necessidades de um público diversificado, desde famílias a agricultores. O objetivo era claro: destronar o bem-sucedido e versátil Citroën 2CV. O projeto, nomeado Projeto 112, viria a revolucionar a engenharia da marca, ao abandonar a tradicional configuração de motor e tração traseira, adotada no carismático 4CV, em favor de um sistema tudo-à-frente (motor dianteiro e tração dianteira), uma solução que oferecia melhor aproveitamento do espaço e maior estabilidade, marcando uma viragem definitiva na indústria.

Sumário do conteúdo
Veja Também …
O Lançamento e o Conceito Revolucionário (1961-1967)
O Renault 4, ou R4, foi apresentado ao mundo em agosto de 1961, lado a lado com o efémero R3. Este lançamento não foi apenas a introdução de um novo modelo, foi a inauguração de um novo conceito de mobilidade. A Renault escolheu a região de Camargue, em França, conhecida pelos seus terrenos desafiantes e enlameados, para demonstrar as capacidades do Renault 4 perante os jornalistas, provando a sua robustez e aptidão para todos os tipos de piso, uma clara vantagem sobre o seu principal concorrente, o Citroën 2CV.
O design do Renault 4 era uma rutura: um carro de dois volumes, com quatro portas (algo raro na altura) e, crucialmente, um portão traseiro (o hayon), oferecendo uma versatilidade de carga inédita, mais comum em carrinhas comerciais do que em automóveis de passageiros. Esta inovação transformou o R4 no carro perfeito para o quotidiano, capaz de levar as compras, a família ou até mercadorias maiores. O R4 original foi lançado com duas designações principais – R3 e R4. O R3, rapidamente descontinuado devido ao motor ainda mais pequeno de 603 cm³ (23 CV), serviu para demonstrar a base do conceito, mas foi o R4 que, com o seu motor de 747 cm³, começou a escrever a lenda.
Os primeiros modelos do Renault 4 apresentavam um motor de 4 cilindros em linha, com cilindradas a rondar os 747 cm³ e potências modestas, tipicamente entre 27 e 30 CV (SAE), mas que eram mais do que suficientes para o seu peso leve e filosofia de utilização. A suspensão independente nas quatro rodas, com barras de torção, oferecia um conforto notável, especialmente em estradas rurais e pisos degradados, tornando-o um verdadeiro “pau para toda a obra”. O seu caráter económico e de manutenção simples selou o sucesso junto da classe operária e dos agricultores.
A alavanca de velocidades, tipo “bengala”, que saía do tablier, era uma das suas marcas registradas, libertando espaço no piso e contribuindo para a sua aura de engenho e simplicidade. A versão mais conhecida e que acabaria por popularizar a designação, nomeadamente em Portugal, foi o 4L (R4L – de Luxe), que trazia alguns acabamentos ligeiramente melhores e um motor que, rapidamente, evoluiu em cilindrada e potência para cerca de 845 cm³ e 34 CV, atingindo uma velocidade máxima de 115 km/h, uma melhoria significativa em relação aos 100 km/h iniciais.
O Nascimento do Ícone – Do Projeto 112 ao Carro das “Calças de Ganga”
O conceito de um carro “tipo jeans” foi a força motriz por trás do Renault 4. Pierre Dreyfus queria um veículo que fosse robusto, sem luxos desnecessários, mas que se adaptasse a qualquer situação e a qualquer pessoa, independentemente da sua classe social ou ocupação. Tinha de ser fiável, fácil de reparar e, sobretudo, acessível. Este pensamento resultou numa máquina de engenharia simples mas brilhante.
Este foco na utilidade e na economia fez com que o R4 rapidamente se tornasse um fenómeno de vendas. A sua estrutura permitia uma enorme versatilidade de carroçarias, desde a versão de passageiros (berlina ou hatchback), às furgonetas (Fourgonnette), ideais para serviços de correio, entregas e pequenos negócios. O modelo R4 marcou o abandono dos motores traseiros da Renault (4CV, Dauphine) e a adoção da tração dianteira, uma escolha técnica que, juntamente com o portão traseiro, viria a ser imitada por inúmeros construtores, estabelecendo um novo padrão no segmento de carros compactos.

A Inovação Mecânica e as Primeiras Versões
A base mecânica do Renault 4, com a sua nova disposição tudo-à-frente, foi um salto quântico para a Renault. A tração dianteira, embora já presente noutros modelos europeus, ainda era uma novidade para a marca e para a maioria dos seus clientes.
O motor de 4 cilindros em linha, refrigerado a água (ao contrário da refrigeração a ar do 2CV), garantia um melhor desempenho e fiabilidade, especialmente em longas distâncias. As primeiras versões, como o R3 e o R4, foram seguidas pelo 4L, mais equipado. A produção do primeiro milhão de unidades foi atingida em 1966, apenas cinco anos após o lançamento, um testemunho inegável do seu sucesso imediato. A grelha dianteira, que inicialmente era mais pequena e com o losango da Renault no centro, sofreu as primeiras alterações estéticas para um look mais moderno, que se estendia por toda a largura da frente em 1965.
A Maturação e Expansão Global (1968-1978)
À medida que a década de 60 se transformava nos anos 70, o Renault 4 consolidava a sua posição de campeão de vendas e ícone cultural. O seu design, embora se mantivesse fiel à forma original, recebeu ligeiros retoques que o mantiveram fresco no mercado. Foi nesta fase que o Renault 4 se tornou um verdadeiro cidadão do mundo, sendo produzido ou montado em mais de 28 países, de Espanha e Portugal à Colômbia (onde era carinhosamente apelidado de Amigo Fiel), Argentina (Renoleta) e Jugoslávia (Katrca).
O modelo ganhou notoriedade pela sua adaptabilidade. A versão descapotável, Plein Air, produzida entre 1968 e 1970, tentou rivalizar com o Citroën Méhari, embora sem o mesmo sucesso comercial, mas ganhou um estatuto de culto. Mais tarde, em 1970, foi apresentado o Rodeo, com carroçaria em plástico reforçado com fibra-de-vidro, mecânica R4, concebido para o lazer, competindo diretamente com o rival da Citroën.
O Renault 4 não ficou estagnado a nível mecânico. As motorizações continuaram a evoluir. O bloco de 845 cm³ tornou-se o padrão mais popular, com potências que rondavam os 34 CV. Estes motores, acoplados a uma caixa manual de quatro velocidades (inicialmente de três), eram conhecidos pela sua resiliência e baixa manutenção. Em 1975, o modelo recebeu uma grelha retangular em plástico, substituindo a anterior em alumínio, e novos para-choques, dando-lhe um aspeto mais contemporâneo e robusto.
A produção de cinco milhões de unidades foi celebrada em 1977, provando que, apesar da crescente concorrência de modelos mais modernos como o Ford Escort, o Opel Kadett e o Fiat 127, a fórmula de simplicidade e versatilidade do R4 continuava a conquistar corações e carteiras. O seu impacto cultural era notório; era o carro da polícia, dos correios, dos serviços de emergência e, claro, da população rural, que dependia da sua capacidade de enfrentar caminhos de terra batida com a mesma facilidade que as avenidas da cidade.

A Geração 4L e as Versões Especiais
A denominação 4L (Quatro Latas em Portugal) ficou indelevelmente ligada ao modelo, embora tecnicamente se referisse à versão mais equipada (Luxe). Esta geração viu o R4 atingir o auge da sua popularidade e diversidade de carroçarias.
As furgonetas Fourgonnette e a sua variante de teto alto, com a engenhosa abertura superior para mercadorias compridas (girafon), tornaram-se omnipresentes nas paisagens urbanas e rurais da Europa e além. As versões especiais começaram a surgir, marcando a sua presença para lá do utilitário, como o Parisienne (1963), com o seu charme distinto e detalhes decorativos, que visava o público feminino, e o Safari, mais vocacionado para o lazer. Estas variantes demonstravam a capacidade do R4 de ser, ao mesmo tempo, um carro do povo e um automóvel com um certo je ne sais quoi.
O Impacto Cultural e os Apelidos Carinhosos
O Renault 4 foi muito mais do que um meio de transporte; foi um catalisador social. A sua simplicidade e ubiquidade fizeram com que fosse adotado e rebatizado com carinho em muitos dos países onde foi vendido.
Os apelidos como “Quatro Latas” (Portugal e Espanha) e “Pichirilo” ou “Amigo Fiel” (Colômbia) refletem o laço emocional e a perceção de fiabilidade e robustez que o carro inspirava. Em Portugal, a produção local em Setúbal (onde chegou a ser produzido) e a sua utilização pelas famílias, que o carregavam com tudo e mais alguma coisa, desde sacos de batatas a galinhas, cimentaram o seu lugar na memória coletiva. Era um carro que “resolvia”, que não tinha pretensões, mas que nunca deixava o dono na mão, mesmo nas condições mais adversas.

A Evolução GTL e a Aventura (1979-1987)
No final dos anos 70, o Renault 4 recebeu a que seria a sua mais importante evolução técnica e estética, o modelo GTL (Grand Tourisme Luxe). Lançado em 1978, o GTL foi uma resposta à necessidade de melhorar o desempenho e o conforto face à concorrência mais moderna e rápida.
O GTL introduziu um motor mais potente e eficiente, o bloco de 1108 cm³, que debitava 34 CV, mas oferecia um binário superior e uma maior elasticidade na condução. Embora a potência máxima se mantivesse semelhante aos últimos 845 cm³, a melhoria na aceleração e na capacidade de manter velocidades de cruzeiro mais elevadas era notória. Externamente, o GTL era facilmente reconhecível pelas proteções em plástico cinzento na parte inferior da carroçaria (guarda-lamas e laterais), que não só lhe davam um aspeto mais off-road, como também protegiam a chapa, combatendo o seu maior inimigo: a corrosão.
A aventura e a robustez do Renault 4 foram celebradas em eventos de prestígio, como o Rali Dakar. Em 1980, os irmãos Claude e Bernard Marreau participaram no exigente rali africano com uma versão modificada do R4, que, apesar de não ser uma vitória absoluta, demonstrou a capacidade do pequeno “Quatro Latas” de enfrentar os terrenos mais inóspitos, reforçando a sua imagem de durabilidade e fiabilidade. Esta participação no Dakar é um dos momentos mais icónicos da sua história desportiva.
No interior, o GTL também trouxe melhorias no conforto, com bancos mais anatómicos e um painel de instrumentos redesenhado. A manutenção continuava a ser o seu ponto forte. A filosofia de design que permitia ao capô abrir-se para a frente, como um avental, mantinha a facilidade de acesso à mecânica, um aspeto muito apreciado por proprietários e mecânicos.
A Versão GTL: O Equilíbrio Perfeito
O Renault 4 GTL representou o auge da evolução do modelo clássico. A introdução do motor de 1.108 cm³ não só proporcionou um melhor desempenho em estrada, como também o preparou para a crescente malha rodoviária e autoestradas europeias. A fiabilidade e a simplicidade da sua mecânica, com o seu sistema de refrigeração a água, continuaram a ser um trunfo inegável.
A carroçaria recebeu retoques que, sem desvirtuar o desenho original, lhe conferiram uma imagem mais atual e pronta para a aventura. As proteções laterais em plástico eram mais do que um pormenor estético; eram uma camada de defesa contra os pequenos embates e, acima de tudo, contra o desgaste provocado pela lama e pela água, um problema crónico nas primeiras gerações. O GTL era o Renault 4 mais completo e mais bem preparado para enfrentar o final do século XX.

Motorizações e Especificações (Análise Cronológica)
A evolução mecânica do Renault 4 foi gradual e focada na fiabilidade e economia, mais do que na performance pura. A lista de motorizações ao longo dos anos reflete este percurso:
- R3 (1961-1962):
- Cilindrada: 603{ cm3
- Potência: 23 CV
- Caixa de Velocidades: Manual de 3 velocidades.
- R4 / 4L (Início – 1961-1967):
- Cilindrada: 747 cm3
- Potência: 27 a 30 CV (dependendo da versão/mercado)
- Velocidade Máxima: cerca de 100 km/h
- R4 / 4L (Fase Intermédia – 1965-1986):
- Cilindrada: 845 cm3
- Potência: 34 CV
- Velocidade Máxima: cerca de 115 km/h
- R4 GTL (1978-1992):
- Cilindrada: 1.108 cm3
- Potência: 34 CV
- Binário: Melhorado, oferecendo maior elasticidade na condução.
- Caixa de Velocidades: Manual de 4 velocidades.
Apesar das potências se manterem modestas, o ponto chave era a durabilidade e o baixo consumo. A manutenção era incrivelmente simples, muitas vezes possível de ser feita pelo próprio proprietário com ferramentas básicas, um fator crucial para a sua popularidade global, especialmente em mercados emergentes ou com infraestruturas rodoviárias menos desenvolvidas.
O Descontinuamento e o Legado (1988-1994 e o Futuro)
O final da década de 80 marcou o início do declínio do Renault 4 na Europa Ocidental. As normas de segurança e emissões tornaram-se mais rigorosas, e a concorrência de modelos mais recentes e sofisticados, como o Renault 5 (já estabelecido no mercado) e o Renault Twingo (lançado em 1992 com um conceito inovador de monovolume compacto), começou a ofuscar o carisma simples do R4.
A produção em França cessou em 1992, mas o modelo continuou a ser fabricado noutros países, como em Marrocos e na Eslovénia, até 1994, quando a produção parou definitivamente. Para assinalar a despedida, a Renault lançou a edição especial “Bye Bye” (1992), limitada a 1.000 unidades, todas numeradas, que se tornaram imediatamente peças de colecionador. A última unidade do Renault 4 saiu da linha de montagem em 1994, encerrando um ciclo de mais de 33 anos de produção.
O legado do Renault 4 é imenso. Com mais de 8,1 milhões de unidades vendidas, é o modelo mais vendido da história da Renault. O seu conceito de hatchback e a tração dianteira estabeleceram o padrão para os automóveis compactos modernos. O R4 não desapareceu da estrada; tornou-se um clássico de culto, adorado por colecionadores, entusiastas de rally-raid amadores e pela comunidade de restomodding que aprecia a sua simplicidade mecânica e o seu estilo intemporal.
Atualmente, o Renault 4 é um ativo valioso no mercado de clássicos. A sua história e o sentimento de nostalgia que evoca garantem que os exemplares bem conservados são altamente procurados. Mais recentemente, a Renault anunciou o renascimento do ícone na forma de um SUV compacto e 100% elétrico: o Renault 4 E-Tech elétrico.
Este novo modelo, que assenta na plataforma AmpR Small, presta homenagem ao design original, mantendo a versatilidade e a robustez, mas adaptando-o às necessidades de mobilidade do século XXI, com potências que variam entre 120 CV e 150 CV e autonomias que ultrapassam os 400 km. Este regresso demonstra que a filosofia de “carro para todos” e “para toda a obra” do Renault 4 é intemporal.

A Despedida do Clássico e o Renascimento Elétrico
O descontinuamento do Renault 4 foi um momento agridoce. Por um lado, era o fim de uma era; por outro, a sua base mecânica simples e a facilidade de reparação garantiram que muitos exemplares continuassem a circular.
As últimas unidades, produzidas em países como a Eslovénia, serviram para satisfazer a procura em mercados onde a simplicidade e o preço ainda eram os fatores decisivos. O Renault 4 tornou-se, ironicamente, o padrão pelo qual a durabilidade e a fiabilidade de outros carros eram medidas. A sua influência sobre modelos posteriores da Renault, como o primeiro Twingo e até o Dacia Duster (que herdou um conceito de robustez e simplicidade), é inegável, provando que as lições aprendidas com o Quatro Latas continuam a moldar a estratégia da marca.
O Legado do Mais Vendido da Renault
O estatuto do Renault 4 como o modelo mais vendido da marca (com 8.135.424 unidades) fala por si. É o quarto automóvel mais vendido de todos os tempos. O R4 provou que a inovação não reside apenas na complexidade, mas muitas vezes na simplicidade inteligente. A sua estrutura de hatchback com portão traseiro, a suspensão confortável e a tração dianteira tornaram-no num modelo pioneiro.
- Marcos na História do Renault 4:
- 1961: Lançamento do R3 e R4.
- 1965: Introdução da nova grelha dianteira e aumento da cilindrada.
- 1966: O primeiro milhão de unidades é alcançado.
- 1970: Lançamento da versão Rodeo.
- 1977: Produção atinge os cinco milhões de unidades.
- 1978: Lançamento do modelo GTL (1108 cm³).
- 1980: Participação no Rali Paris-Dakar.
- 1992: Fim da produção em França, edição especial “Bye Bye”.
- 1994: Fim definitivo da produção global.
- Século XXI: Renascimento do ícone com o Renault 4 E-Tech elétrico.
O Renault 4 continua a ser uma referência de design e funcionalidade, e o seu regresso como elétrico é uma ponte entre a nostalgia do passado e a promessa de um futuro sustentável.

Conclusão – O Ícone Intemporal
O Renault 4, ou o nosso querido “Quatro Latas”, é um testemunho da genialidade do design funcional. Foi concebido para ser um veículo acessível, robusto e versátil, e cumpriu essa missão de forma magistral, superando o seu rival e estabelecendo novos padrões na indústria. A sua longa vida em produção, as suas múltiplas versões e a sua presença em todos os cantos do mundo atestam o seu sucesso.
O R4 não era apenas um carro; era um membro da família, um colega de trabalho, e um companheiro de aventura. A sua história é a história de milhões de pessoas que, pela primeira vez, encontraram a liberdade de movimentoao volante de um automóvel fiável. O seu legado perdura e, com o seu renascimento elétrico, o Renault 4 prova que as “calças de ganga” da Renault estão prontas para vestir uma nova geração de condutores.








